segunda-feira, janeiro 17, 2011

A Rússia em 1839

O livro da autoria do aristocrata francês Astolphe-Louis-Léonor Marquis de Custine, “La Russie en 1839”, descreve a Rússia como a antítese histórica e geográfica da Europa, como anti-Europa, onde a vida e o destino dos leigos e do clero, dos senhores e dos cidadãos, depende única e exclusivamente da vontade despótica do seu soberano. O texto foi publicado pela primeira vez em 1843, mas parece que descreve a Rússia actual.

Monarquista convicto, Marques de Custine, odiava a revolução francesa, que guilhotinou o seu pai e o seu avo, mas também estava desencantado com a nova monarquia constitucional francesa, demasiadamente “neo-liberal” ao seu gosto. Por outro lado, de Custine era um adorador convicto da Rússia, cuja monarquia absolutista via como um ideal.

Escritor de ficção e de relatos de viagem, Marques de Custine visitou a Rússia em 1839, como resultado desta viagem nasce o seu livro La Russie en 1839, que descreve não somente a corte do rei Nicolau I, mas o tecido social, a economia e o estilo da vida do império russo.

La Russie en 1839 teve seis edições em França, foi rapidamente traduzido e largamente lido na Inglaterra e Alemanha, mas banido na Rússia. Apenas em 1890-1891 os trechos do livro foram publicados nos jornais russos. Uma edição russa muito censurada e curta foi publicada em 1910 e 1930. A primeira versão integral da obra foi publicada na Rússia apenas em 1996.

Mas o que de tão inquietante e perigoso está descrito nas páginas do livro, que mais de 150 anos foi mantido longe do público russo?

Os estrangeiros na Rússia

“O corpo diplomático e os estrangeiros no geral, este governo de espírito bizantino e toda a Rússia sempre consideravam como os espiões invejosos hostis. Neste aspecto os russos parecem chineses, pois quer uns quer outros sempre acham, que os estrangeiros os invejam, olhando para si, julgam os outros”.

Os estrangeiros “leais”

“Os moscovitas /.../ falando sobre os estrangeiros, a quem eles cegam com as suas celebrações, dizem que os devem enguirlander cobrir com as grinaldas; agora se deve mudar para encaviarer, alimentar com o caviar, dizem eles”.

Os projectos e a estatística

“Rússia é um império dos catálogos: se os ler como uma colectânea de autocolantes – tudo está maravilhoso; mas tenham cuidado ir além dos títulos. /.../ Quantas florestas são apenas lamaçais, onde você não conseguirá cortar nenhuma lasca!.. Quantos regimentos longínquos são quadros sem nenhum soldado; as cidades, estradas – tudo apenas projectos; a própria nação, finalmente é apenas a publicidade colada à Europa, um engano de ficção diplomática”.

“Quando digo aos moscovitas, que as suas florestas são mal conservadas /.../ eles se riem na minha cara. Eles calcularam quantos milhões de anos são necessários para cortar as florestas que cobrem o espaço incalculável do império enorme. E este cálculo é a resposta para tudo. /.../ Estatística faz a sua tarefa aritmética, mas a calculadora, quando calcula a soma de totais não visita as localidades, para verificar de que são feitas as florestas, anotadas no papel”.

Cadeia dos povos

“Este império, por maior que poderá ser, é apenas uma cadeia, cuja chave é detida pelo imperador, isso em um país que pode existir apenas com as conquistas...”

Violência policial

“De dia, em uma rua movimentada, espancar uma pessoa até a morte antes de a julgar, isso parece totalmente natural à sociedade e à polícia de São Petersburgo. Os pequenos burgueses, senhores, soldados, citadinos ricos e pobres, pequenos e grandes, todos concordam calmamente que essas coisas acontecem perante os seus olhos, não se preocupam com o mecanismo deste acontecimento”.

Rússia e Ocidente

“Os moscovitas recordam com orgulho à França as suas desordens políticas /.../ Mas que seja dada a liberdade de imprensa na Rússia por 24 horas e você irá saber das coisas, que vos obrigarão se recolher aterrorizado. O silêncio é absolutamente necessário para a opressão. No poder absoluto, a quebra do silêncio significa indiscrição, que equivale ao traição de estado /.../ Os nossos jornais oferecem todas as notícias sobre tudo que aqui acontece /.../, quando a política bizantina deles, funcionando na escuridão, esconde cuidadosamente tudo aquilo que eles tem medo de nós mostrar. Nós se movemos de dia – eles se movem às escondidas: o jogo não é igual. Desconhecimento, à que eles nos obrigam, cega nós; a nossa sinceridade os ilumina, nos temos o erro de palavreado, eles dominam o poder dos segredos: isso os torna tão culpados.”

“Rússia vê na Europa a presa, que por causa das nossas desavenças, mais tarde ou mais cedo será entregue à sua humilhação; ela cultiva a anarquia entre nos na esperança de usufruir dos estragos. /.../ Desde longos anos Paris lê os jornais revolucionários /.../ financiados pela Rússia. “Europa – dizem em São Petersburgo – /.../ se esgota por causa do liberalismo vazio, em quanto nos somos fortes, porque não somos livres; aguentaremos a canga, obrigaremos outros pagar a nossa desonra”.

“Eu não sei se o carácter do povo russo criou aquelas lideranças, ou aquelas lideranças moldaram o carácter do povo russo... Mas me parece que aqui presenciamos a influência recíproca. Em nenhum lugar, além da Rússia, poderia nascer uma ordem estatal igual, mas o povo russo não se ia tornar naquilo que é, se vivesse sob uma outra forma de estado”.

Kremlin

“Todas estas construções sem número revelam uma única ideia, que domina tudo: a guerra apoiada no medo. /.../ Morar no Kremlin não significa viver, mas se defender: a opressão provoca a insurreição, a insurreição obriga à vigilância, a vigilância acentua o perigo, e desta longa sucessão das acções e reacções nasce o monstro, despotismo, que construiu a sua casa em Moscovo, Kremlin”.

Império acima de tudo!

“De qualquer maneira, os moscovitas, calando a voz da sua razão, acreditam mais no czar, do que em Deus. /.../ Ambição os obriga sacrificar tudo, absolutamente tudo /.../ Isso é a tal lei suprema, que subjugou essa nação ao Ivan, o Terrível: que seja o tigre no lugar do Deus, mas que não desaparece o império”.

“No coração do povo russo habita a ambição que /.../ se alimenta da desgraça de toda a nação. Essa nação é conquistadora e cobiçosa em resultado da necessidade; na sua subordinação humilhante, acalenta o sonho de expandir a dominação tirânica sobre outros; a glória, as riquezas esperançadas permitem não pensar sobre a desonra em que se encontra, e para limpar-se do sacrifício da liberdade social e individual, essa escrava ajoelhada sonha em dominar o Mundo”.

Arquivos

“No mosteiro de Troitsk /.../ apesar dos meus pedidos enérgicos e longos, não me quiseram mostrar o arquivo livreiro; o meu tradutor repetia me toda a hora a mesma resposta: “Isso é proibido”...

Igreja Ortodoxa Russa

“Os clérigos ortodoxos moscovitas nunca eram e nunca será nada mais do que a polícia vestida em uniformes algo diferentes dos fardamentos do exército laico do império. Os popes e os seus bispos formam um regimento clerical sob o comando do imperador. Nada mais”.

A reacção de Moscovo

A edição do livro La Russie en 1839 provocou a resposta irada de Moscovo, que reagiu dissimuladamente através das suas representações diplomáticas na Europa. O estado russo financiou várias obras escritas pelos seus diplomatas, tentando desacreditar o livro e a imagem do Marques de Cistine. A campanha envolveu o diplomata russo em Paris Yakov Tolstoy e Xavier Labensky (sob o pseudónimo de Jean Polonius); o publicista Nicolay Grech, ligado aos serviços secretos russos. Para alargar o número dos “cidadãos indignados”, Yakov Tolstoy chantageou o publicista liberal russo, residente em Paris, Ivan Golovin. Ou Golovin desmentia de Custine na imprensa, ou seria obrigado regressar à Rússia. A missão diplomática russa em Paris até sugeriu ao chefe dos gendarmes Benkendorf, em aproveitar a situação financeira delicada do escritor Onoré de Balzac para o forçar a desacreditar publicamente o livro do de Custine (Charles Quenet: “Tchaadaev et lettres philosophiques”, Paris, 1931, p. 298).

Baixar o texto do livro gratuitamente da Internet (4 volumes em francês):
Russie en 1839, Volume I by marquis Astolphe de Custine
Russie en 1839, Volume II by marquis Astolphe de Custine
Russie en 1839, Volume III by marquis Astolphe de Custine
Russie en 1839, Volume IV by marquis Astolphe de Custine

Ler o texto em inglês:
http://www.amazon.com/Russie-en-1839-Astolphe-Custine/dp/0559806639